quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Como o filólogo J. R. R. Tolkien inventou a tradição da Terra-média


Por Reinaldo José Lopes

O escritor J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis"
e de "O Hobbit"
Vamos começar com uma declaração de conflito de interesses. O presente escriba passou três anos de mestrado e quatro anos e meio de doutorado envolvido com a tentativa de demonstrar o valor literário da obra do inglês John Ronald Reuel (ou J.R.R.) Tolkien (1892-1973), o autor de "O Senhor dos Anéis" e de "O Hobbit".

Não se trata de tarefa das mais simples, admito. Alguns dos críticos mais respeitados do século 20 tiveram a oportunidade de resenhar a Saga do Anel quando seus três volumes foram publicados originalmente, entre 1954 e 1955, e não foram lá muito gentis.


O americano Edmund Wilson (1895-1972), por exemplo, escreveu que a popularidade daquela "porcaria ininteligível" se devia ao fato de que "certas pessoas, especialmente na Grã-Bretanha, talvez, possuem um apetite por lixo juvenil que dura a vida toda".

Já o britânico Philip Toynbee (1916-81), após classificar os livros como "mal escritos, amalucados e infantis", declarou estar aliviado porque eles estavam caindo "num esquecimento misericordioso". Ironicamente, poucos anos após a declaração de Toynbee, uma edição pirata de "O Senhor dos Anéis" caiu nas graças dos adeptos da contracultura nos EUA, fazendo a obra virar o fenômeno de massa que continua sendo até hoje.

Mais recentemente, a crítica feminista australiana Germaine Greer, ao comentar as enquetes que elegeram Tolkien como "autor do século", disse que o resultado era "um pesadelo" e que a obra tolkieniana não passava de "fuga da realidade".

Em meio a esse coro, poucas vozes de peso se levantam a favor de Tolkien. A principal talvez seja a do poeta W.H. Auden (1907-73), que se apaixonou pelo épico medieval "Beowulf" ao ouvir Tolkien recitá-lo no original em inglês antigo quando estudava em Oxford. Para Auden, "O Senhor dos Anéis" merecia o status de obra-prima.

Diante de tal quadro, portanto, almas menos caridosas podem enxergar este ensaio como um exercício de dissonância cognitiva, uma tentativa de provar que eu não perdi o meu tempo nem dilapidei os recursos da Universidade de São Paulo defendendo a qualidade literária de um autor que, no máximo, é bom entretenimento. Peço a paciência do leitor para tentar mostrar por que vale a pena cerrar fileiras ao lado dos hobbits.

São, de fato, tempos interessantes para os entusiastas da obra tolkieniana --e, paradoxalmente, também para seus detratores.

De um lado, o rolo compressor de mais uma trilogia cinematográfica baseada na obra do filólogo está mobilizando nerds dos quatro cantos da Terra.

Enquanto escrevo estas linhas, o primeiro filme da nova série, "O Hobbit: Uma Jornada Inesperada", já arrecadou mais de meio bilhão de dólares no mundo todo após duas semanas de exibição. Não é preciso ter clarividência élfica para prever que os três filmes estão fadados a ter bilheterias bilionárias.

De outro lado, a falta de apreço do "mainstream" literário pela mitologia da Terra-média (como Tolkien denomina o continente que é o palco do grosso de suas tramas) continua firme.

O mais recente argumento vindo desse contingente lança mão de comparações entre a obra de Tolkien e a série "As Crônicas de Gelo e Fogo", de George R.R. Martin, mais conhecida pelo nome do primeiro livro, "A Guerra dos Tronos", que batiza a adaptação para a TV da rede HBO.

Quem exalta Martin e rebaixa Tolkien diz que o primeiro produz literatura de fantasia melhor que o segundo porque "A Guerra dos Tronos" retrata violência e sexo de forma explícita, além de dar voz e um ponto de vista até para os personagens mais moralmente ambíguos (para não dizer canalhas). Em resumo, Tolkien seria para crianças; Martin, para adultos.

GUETO

Desconfio que essa avaliação tenha a ver, em parte, com o fato de que, fora do gueto dos fãs --um gueto no qual cabem milhões de pessoas, mas ainda assim um gueto--, as pessoas tenham lido apenas "O Hobbit" e "O Senhor dos Anéis".

Somadas, as obras têm por volta de 1.500 páginas, mas ainda assim são apenas a proverbial ponta do iceberg do universo concebido pelo escritor. Quem vê o triunfo do "bem" e o (relativo) otimismo da Saga do Anel esquece que Tolkien passou 50 anos de sua vida trabalhando nas lendas sombrias de "O Silmarillion", que representam, grosso modo, a pré-história da Terra-média.

Esse passado mítico ao qual os personagens de "O Senhor dos Anéis" volta e meia aludem está cheio de guerras fratricidas, anti-heróis sanguinolentos e até uma ou duas paixões incestuosas. O espantoso, no fim da leitura, é que alguém tenha sobrevivido à carnificina dos chamados Dias Antigos.

Mas é melhor deixar de lado a discussão sobre a suposta falta de complexidade moral e profundidade psicológica na obra de Tolkien. Quero me concentrar em algo que pode ser demonstrado de forma mais objetiva.

Embora o autor encarnasse, em temperamento e estilo, boa parte do que a "corrente principal" da literatura do século 20 queria destruir, suas realizações têm um paralelo irônico com as de gente como James Joyce (1882-1941), Ezra Pound (1885-1972) --ou mesmo Guimarães Rosa (1908-67). Isso porque a pedra angular do edifício tolkieniano é um experimento radical de invenção linguística.

LEGADO

Quando digo isso, não estou falando apenas, nem principalmente, das cerca de dez línguas ficcionais que Tolkien chegou a esboçar quando criou a Terra-média --embora elas sejam, sem dúvida, parte importante do legado estético do autor.

A criação de novos idiomas integra um fenômeno bem mais amplo na obra do filólogo, que poderíamos chamar de "invenção da tradição".

O problema que Tolkien precisava atacar era o seguinte: como se arquiteta uma nova mitologia? Esse era o objetivo declarado dele --a criação de uma "mitologia para a Inglaterra"-- desde as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, na qual Tolkien, como oficial subalterno durante a batalha do Somme (em 1916), viu todos os seus amigos mais próximos morrerem.

Foi convalescendo de "febre das trincheiras" que ele começou a esboçar seu conjunto de mitos. Para alguém com o profundo conhecimento filológico do autor, o fio da meada para realizar esse tipo de tarefa só poderia vir da criação --ou recriação-- linguística.

Essa, em essência, tinha sido a tarefa dos ancestrais intelectuais de Tolkien ao longo de todo o século 19. Nessa era de ouro da filologia, descobriu-se não apenas que era possível mostrar que línguas há muito separadas, e um bocado distintas, tinham um ancestral comum mas também esboçar leis fonéticas, aparentemente tão regulares quanto as da física, para explicar como o grego "ekklessía" desembocou no português "igreja", por exemplo.

Começando com a reconstrução de fonemas e palavras ancestrais, pioneiros da filologia saltaram para o desafio de refazer textos inteiros, como a célebre fábula de August Schleicher (1821-68) em proto-indo-europeu, o ancestral hipotético de quase todos os idiomas entre Portugal, a oeste, e a Índia, a leste.

E, de textos para tradições culturais inteiras, o pulo era relativamente curto.

Alguns filólogos preferiam usar os cacos do passado para, digamos, reconstruir o conjunto "original" de deuses cultuados pelos indo-europeus; Tolkien, por sua vez, usou todas as ferramentas filológicas à sua disposição para criar um panteão ficcional que é funcionalmente indistinguível dos do "mundo real" --ou "mundo primário", como ele costumava dizer, em oposição ao "mundo secundário" que forjou.

O que diabos quero dizer com "funcionalmente"? Começando com as línguas ficcionais: qualquer um pode inventar uma sequência aleatória de fonemas e dizer que eles são frases de um idioma inventado. Não era assim que Tolkien operava.

Ele começava com raízes em uma língua ancestral hipotética (qualquer semelhança com o proto-indo-europeu não é mera coincidência) e derivava, então, "línguas-filhas" com tendências fonéticas e semânticas próprias.

É claro que, como no caso de idiomas do "mundo primário", essas tendências não caem do céu, mas são frutos da história: isolamento e contato com outras culturas e até a interferência estatal moldam tais características (a língua ficcional preferida do autor, o quenya ou alto-élfico, teve seu uso público proibido em dado momento da trajetória do "mundo secundário" tolkieniano, por exemplo). Todos esses detalhes foram cuidadosamente simulados por Tolkien antes que fossem escritos os fragmentos de poesia élfica em "O Senhor dos Anéis".

Esse é apenas o aspecto mais nerd da coisa, no entanto. Conforme os leitores mais atentos costumam perceber, quase toda a obra de ficção de Tolkien é apresentada como traduções de manuscritos antigos que teriam chegado às mãos do filólogo.

O procedimento, conhecido como pseudo-tradução, é no mínimo tão velho quanto "Dom Quixote" --Cervantes também o emprega no começo do século 17--, mas nenhum autor supera Tolkien ao usá-lo para simular uma boneca russa literária, com camadas e mais camadas de transmissão cultural.

Para começar, como o inglês é a "língua de tradução" fictícia --representando, no caso de "O Senhor dos Anéis", a fala dos hobbits--, Tolkien tem o cuidado de representar idiomas aparentados a ela na trama com equivalentes do inglês no "mundo primário": anglo-saxão, escandinavo antigo e até gótico, a mais arcaica das línguas germânicas registradas.

Em segundo lugar, o filólogo sabia melhor do que ninguém que manuscritos antigos não são artefatos neutros. Representam uma história textual e um ponto de vista dentro da corrente de transmissão em que se inserem.

É assim que eles aparecem em "O Senhor dos Anéis" e "As Aventuras de Tom Bombadil", por exemplo, na qual toda uma genealogia de códices, com diferentes edições e anotações de escribas, é postulada em detalhes. Esse expediente foi usado até para explicar discrepâncias na trama entre uma edição e outra de "O Hobbit" --cada uma delas teria sido produto de uma mão diferente ao longo da tradição textual.

Essa simulação cuidadosa de diversidade linguística aparece ainda no emprego cuidadoso de palavras e expressões raras, dialetais ou arcaicas, em variações sintáticas e de estilo discursivo que ajudam a caracterizar personagens ou culturas com grande economia.

Aquela que talvez seja a maior realização da inventividade linguística de Tolkien, no entanto, só fica de fato clara quando se olha não apenas para "O Senhor dos Anéis" mas também para a imensa massa de textos só publicados após a morte do autor. No conjunto, destaca-se a longa tradição de narrativas, anais e poemas editada por seu filho Christopher em "O Silmarillion".

Em essência, as muitas versões dos episódios centrais da mitologia ficcional, envolvendo formas literárias diferentes, múltiplos graus de detalhamento e pontos de vista --aspectos que podem ser vislumbrados nas alusões e citações feitas em "O Senhor dos Anéis", por exemplo--, deram à tradição cultural de Tolkien a mesma complexidade das tradições culturais do "mundo primário".

De fato, a submersão de fontes num único texto que se vê na Bíblia, ou o emprego de fórmulas poéticas tradicionais para montar um texto novo presente em Homero, para usar exemplos das duas grandes mitologias do Ocidente, aparecem na tradição de "O Silmarillion" e podem ser apreciados pelo leitor que tiver olhos para vê-los.

Não é pouca coisa. E são instrumentos colocados a serviço de uma visão épica --trágica, porém corajosa--, da existência, ao alcance de qualquer um que se dispuser a enxergar um pouco além das caras redondas e joviais de hobbits que também podem se tornar heróis.

Fonte: Folha



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