O país provavelmente seria outro se uma das bombas transportadas no veículo não tivesse explodido no colo do terror.
A coisa aconteceu, como se sabe, em 30 de abril de 1981. Já lá se vão 30 anos. E o Puma ainda arde na enciclopédia como chama mal explicada.
Os repórteres Chico Otavio e Alessandra Duarte levam às páginas deste domingo (24) uma notícia (leia abaixo) que traz à luz pedaços sombreados da história.
A dupla apalpou a agenda do sargento Guilherme Pereira do Rosário, em cujo colo explodiu, por imperícia, a bomba do Riocentro.
O sargento morreu. Seu acompanhante, o capitão Wilson Machado, feriu-se gravemente. Realizaram-se dois inquéritos militares.
O primeiro, de 1981, terminou em farsa. O capitão ferido na explosão declarou-se vítima, não autor do atentado.
Em notas, o Exército endossou a versão burlesca. O general Figueiredo, presidente de então, prometera prender e arrebentar quem se opusesse à abertura.
Porém, entre o cumprimento da promessa e a preservação da unidade militar, Figueiredo optou por fingir que não havia um Puma desafiando sua autoridade.
No segundo inquérito, de 1999, as conclusões migraram da farsa para a pantomima, do inacreditável para o inaceitável.
Ficou entendido que o sargento morto e o capitão ferido eram responsáveis pela explosão, não vitimas.
Incriminaram-se outros dois personagens: o oficial do Exército Freddie Perdigão e o civil Hilário Corrales.
Porém, o STM (Superior Tribunal Militar) absteve-se de punir os terroristas da linha dura. Entendeu-se que a ação deles estava coberta pela lei da anistia.
Foi num volume desse segundo inquérito, mandado ao arquivo em 2000, que os repórteres localizaram a agenda do sargento morto Guilherme Rosário.
A peça –um caderninho marrom que cabe na palma da mão— foi recolhida no local da explosão por um tenente, Divany Carvalho Barros.
Traz anotados, com a caligrafia de Guilherme Rosário, 107 nomes e seus respectivos telefones.
Cruzando dados da época com informações atuais, os repórteres lograram identificar metade dos nomes da agenda.
Descobriu-se uma autêntica rede de pessoas envolvidas com tortura e espionagem.
Há na agenda membros do “Grupo Secreto”, organização paramilitar de direita que deflagrou uma série de atos terroristas para tentar deter a abertura política.
Constam também da lista: militares da chamada comunidade de informações, agentes da Secretaria estadual de Segurança e representantes da sociedade civil.
De resto, o sargento anotara em sua caderneta telefones de meios de comunicação, para os quais ligaria a fim de comunicar sobre atentados.
Todo esse manancial de dados foi ignorado como pista na pseudoinvestigação. Muitos dos nomes da agenda permanecem vivos.
Contactados, disseram não se recordar do sargento da explosão. Não souberam explicar, porém, como seus nomes foram parar na agenda.
Retorne-se ao início: a abertura política iniciada nos anos 80 pelo general Geisel teria tomado outro rumo se a turma do Puma não tivesse se auto-implodido.
Se as bombas explodissem como planejado, haveria pânico e morte num show musical apinhado que se realizava no Riocentro.
Os “comunistas” seriam responsabilizados pelo sangue. A abertura provavelmente seria mandada ao beleléu.
Prevaleceria um Brasil de linha dura, que desaguaria em mais selvageria, nunca no Tancredo Neves do Colégio Eleitoral.
A nova reportagem não apaga o Puma do verbete. Ele continua lá, ardendo. Mas os dados ajudam a recontar um pedaço da história que muitos, ainda hoje, prefeririam esconder.
(Escrito por Josias de Souza)
Sargento Guilherme do Rosário teria participado do atentado contra a OAB
RIO - A habilidade com a datilografia, aliada ao preparo físico, abriu as masmorras do regime ao sargento Guilherme Pereira do Rosário. Soldado lotado na burocracia da Companhia de Petrechos Pesados da Brigada Paraquedista, na primeira metade dos anos 1960, ele acumulou elogios e prestígio por ser “obrigado quase continuamente a trabalhar fora da hora do expediente e sem dias de descanso, com máquinas de escrever emprestadas”, como diz a sua folha de assentamentos, o histórico militar.
Cabelos castanhos médios e crespos, 1,78 metro, como o Exército o descreveu, Rosário serviu na Brigada de fevereiro de 1964 a outubro de 1972, sendo transferido para o Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI I) na condição de sargento (onde ficaria até a sua morte, aos 35 anos, em 1981). Porém, antes mesmo da mudança de unidade, já atuava na repressão, como escrivão de inquéritos políticos (era considerado exímio datilógrafo) e integrante de equipes que “estouravam” aparelhos.
Em 1970, foi convidado para ser escrivão de um inquérito (IPM), como auxiliar da 2ª Seção (Informações) da Brigada. Boletim interno de setembro daquele ano registra que, recrutado para integrar a equipe que estouraria “um aparelho subversivo” no interior do estado, Rosário teria sofrido um acidente da carro no caminho. Um fusca do grupo se chocou com um caminhão na estrada, ferindo o motorista, sargento Albano Affonso Baptista, e Rosário. “Mesmo ensanguentado, Guilherme preocupou-se com o cumprimento da missão”, escreveria depois o chefe da missão.
Na época da transferência, Rosário era um destacado agente operativo das equipes de busca e apreensão, as EBAs, embriões dos DOIs. A confiança do regime no sargento era tanta que nem mesmo a condenação de Rosário a seis meses de cadeia, pela 19ª Vara Cível de capital, por uma dívida não paga, abortou a ascensão do militar nos porões do regime. Logo depois, em 1975, ganharia a Medalha do Pacificador, honraria concedida pelos generais a torturadores e outros agentes da repressão.
Rosário soube retribuir a confiança. Não se abateu nem mesmo quando, em 1971, perdeu a filha de um ano. Atuar em “prisões que poderiam necessitar do uso da força”, sua especialidade inicial, era pouco para ele. Como integrante da Seção de Operações Especiais, escolado no beabá da repressão, quis desenvolver excelência em outras áreas da guerra à subversão - no ano em que morreu, por exemplo, fazia curso de analista de informações na Escola Nacional de Informações (EsNI).
Sua maior aposta, contudo, foi adquirir expertise em explosivos. Em depoimento ao IPM do Riocentro, em 1999, o-sargento da PM Joaquim de Lima Barreto, ex-DOI, da primeira equipe a fazer perícia no Puma, revelou que Rosário possuía “conhecimentos profundos” sobre bombas.
Joaquim, que trabalhava no Serviços de Recursos Especiais do Departamento Geral de Investigações Especiais da Polícia Civil, recordou-se que Guilherme esteve lá por duas ocasiões, “e que nestas ocasiões (em fevereiro ou março de 1981) o assunto era bombas, granadas, dispositivos sofisticados que tivessem recolhidos pelo seu serviço, sempre com o intuito do sargento de aumentar o seu conhecimento”.
A essa altura, Rosário já figurava como um quadro de grupos terroristas cevados pelo regime. Em depoimento ao livro “A direita explosiva no Brasil”, Gilberto Corrales (nome da agenda do sargento e irmão do marceneiro Hilário Corrales, artesão das bombas do “Grupo Secreto”), declarou que, se havia dúvidas sobre a participação de Ronald Watters na morte de Lyda Monteiro, secretária da OAB, no atentado à entidade em 1980, ”não existiam dúvidas sobre a atuação do sargento. De acordo com o livro, “era um dos principais agentes operativos do Grupo Secreto”.
Naquele ano, Rosário se envolvera num acidente doméstico suspeito, quando um botijão de gás explodiu em sua própria cozinha, queimando-lhe o peito e o rosto. Ao que parece, Rosário foi se meter a “sapador”, expressão utilizada nos quartéis para os militares que entediam de explosivos. Mas, como conta o capitão da PM Lindomar Cardeal, que serviu com ele na Brigada Paraquedista, “'no quartel a gente ouvia a seguinte frase: ‘o sapador só erra uma vez’”.
Fonte: (Alessandra Duarte e Chico Otavio / Extra)
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