Manifestação Pública de Organizações de Direitos Humanos
sobre os acontecimentos no Alemão e na Vila Cruzeiro
Há três semanas, as favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se tornaram o palco de uma suposta “guerra” entre as forças do “bem” e do “mal”. A “vitória” propagada de forma irresponsável pelas autoridades – e amplificada por quase todos os grandes meios de imprensa – ignora um cenário complexo e esconde esquemas de corrupção e graves violações de direitos que estão acontecendo nas comunidades ocupadas pelas forças policiais e militares. Mais que isso, esta perspectiva rasa – que vende falsas “soluções” para os problemas de segurança pública no país – exclui do debate pontos centrais que inevitavelmente apontam para a necessidade de profundas reformas institucionais.
Desde o dia 28 de novembro, organizações da sociedade civil realizaram visitas às comunidades do Alemão e da Vila Cruzeiro, onde se depararam com uma realidade bastante diferente daquela retratada nas manchetes de jornal. Foram ouvidos relatos que denunciam crimes e abusos cometidos por equipes policiais. São casos concretos de tortura, ameaça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação. As organizações ouviram também relatos que apontam para casos de execução não registrados, ocultação de cadáveres e desaparecimento.
Durante o processo, a sensação de insegurança e medo ficou evidente. Quase todos os moradores demonstraram temor de sofrerem represálias e exigiram repetidamente que o anonimato fosse mantido. E foi assim, de forma anônima, que os entrevistados compartilharam a visão de que toda a região ocupada está sendo “garimpada” por policiais, no que foi constantemente classificado como a “caça ao tesouro” do tráfico.
A Caça ao Tesouro
É um escândalo: equipes policiais de diferentes corporações, de diferentes batalhões, se revezam em busca do dinheiro, das jóias, das drogas e das armas que criminosos teriam deixado para trás na fuga; em lugar de encaminhar para a delegacia tudo o que foi apreendido, as equipes estão partilhando entre elas partes valiosas do “tesouro”. Aproveitando-se do clima de “pente fino”, agentes invadem repetidamente as casas e usam ameaças e técnicas de tortura como forma de arrancar de moradores a delação dos esconderijos do tráfico. Não bastasse isso, praticam a extorsão e o roubo de pequenas quantias e de telefones celulares, câmeras digitais e outros objetos de algum valor.
Apesar deste quadro absurdo, o governo do estado do Rio de Janeiro tenta mais uma vez esvaziar e desviar o debate, transformando um momento de crise em um momento triunfal das armas do Estado. Nem as denúncias que chegaram às páginas de jornais – como, por exemplo, as que apontam para a fuga facilitada de chefes do tráfico – foram respondidas e investigadas. Independente disso, os relatos que saem do Alemão e da Vila Cruzeiro escancaram um fato que jamais pode ser ignorado na discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro: as forças policiais exercem um papel central nas engrenagens do crime. Qualquer análise feita por caminhos fáceis e simplificadores é, portanto, irresponsável. E muitas vezes, sem perceber, escorregamos para estas saídas.
Direcionar a “culpa” de forma individualizada, por exemplo, e fazer a separação imaginária entre “bons” e “maus” policiais é uma das formas de se esquivar de debates estruturais. Penalizar o policial não altera em nada o cenário e não impede que as engrenagens sigam funcionando. Nosso papel, neste sentido, é avaliar os modelos políticos e as falhas do Estado que possibilitam a perversão da atividade policial. Somente a partir deste debate será possível imaginar avanços concretos.
Diante do panorama observado após a ocupação do Alemão, as organizações de direitos humanos cobram a responsabilidade dos Governos e exigem que o debate sobre a reforma das polícias seja retomado de forma objetiva. Nossa intenção aqui não é abarcar todos os muitos aspectos desta discussão, mas é fundamental indicarmos alguns aspectos que achamos essenciais.
Falta de transparência e controle externo
A falta de rigor do Estado na fiscalização da atuação de seus agentes, a falta de transparência nos dados de violência, e, principalmente, a falta de controle externo das atividades policiais são fatores que, sem dúvida, facilitam a ação criminosa de parte da polícia – especialmente em comunidades pobres, distantes dos olhos da classe média e das lentes da mídia. E os acontecimentos das últimas semanas realmente nos dão uma boa noção de como isso acontece.
Apesar dos insistentes pedidos de entidades e meios de imprensa, até hoje, não se sabe de forma precisa quantas pessoas foram mortas em operações policiais desde o dia 22. Não se sabe tampouco quem são esses mortos, de que forma aconteceu o óbito, onde estão os corpos ou, ao menos, se houve perícia, e se foi feita de modo apropriado. A dificuldade é a mesma para se conseguir acesso a dados confiáveis e objetivos sobre número de feridos e de prisões efetuadas. As ações policiais no Rio de Janeiro continuam escondidas dentro de uma caixa preta do Estado.
Na ocupação policial do Complexo do Alemão em 2007, a pressão política exercida por parte deste mesmo coletivo de organizações e movimentos viabilizou, com a participação fundamental da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, um trabalho independente de perícia que confirmou que grande parte das 19 mortes ocorridas em apenas um dia tinham sido resultado de execução sumária. Foram constatados casos com tiros à queima roupa e pelas costas, disparados de cima para baixo, em regiões vitais, como cabeça e nuca. Desta vez, não se sabe nem quem são, quantos são e onde estão os corpos dos mortos..
Para que se tenha uma ideia, em uma favela do Complexo do Alemão representantes das organizações estiveram em uma casa completamente abandonada. No domingo, dia 28, houve a execução sumária de um jovem. Duas semanas depois, a cena do homicídio permanecia do mesmo jeito, com a casa ainda revirada e, ao lado da cama, intacta, a poça de sangue do rapaz morto. Ou seja, agentes do Estado invadiram a casa, apertaram o gatilho, desceram com o corpo em um carrinho de mão, viraram as costas e lavaram as mãos. Não houve trabalho pericial no local e não se sabe de nenhuma informação oficial sobre as circunstâncias da morte. Provavelmente nunca saberemos com detalhes o que de fato aconteceu naquela casa.
“A ordem é vasculhar casa por casa...”
Por outro lado, o próprio Estado incentiva o desrespeito às leis e a violação de direitos quando informalmente instaura nas regiões ocupadas um estado de exceção. Os casos de invasão de domicílio são certamente os que mais se repetiram no Alemão e na Vila Cruzeiro. Foi o próprio coronel Mario Sérgio Duarte, comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, quem declarou publicamente que a “ordem” era “vasculhar casa por casa”, insinuando ainda que o morador que tentasse impedir a entrada dos policiais seria tratado como suspeito. Mario Sérgio não apenas suprimiu arbitrariamente o artigo V da Constituição, como deu carta-branca à livre atuação dos policiais.
Em qualquer lugar do mundo, a declaração do coronel seria frontalmente questionada. Mas a naturalidade com que a fala foi recebida por aqui reflete uma construção histórica que norteia as ações de segurança pública do estado do Rio de Janeiro e que admite a favela como território inimigo e o morador como potencial criminoso. Em comunidades pobres, o discurso da guerra abre espaço para a relativização e a supressão dos direitos do cidadão, situação impensável em áreas mais nobres da cidade. De fato, a orientação das políticas de sucessivos governos no Rio de Janeiro tem sido calcada em uma visão criminalizadora da pobreza.
Em meio a esse caldo político, as milícias formadas por agentes públicos – em especial por policiais – continuam crescendo, se organizando como máfia por dentro da estrutura do Estado e dominando cada vez mais bairros e comunidades pobres no Rio de Janeiro. No Alemão e na Vila Cruzeiro, comenta-se que parte das armas desviadas por policiais estaria sendo incorporadas ao arsenal destes grupos. Especialistas avaliam com bastante preocupação a forma como o crime está se reorganizando no estado.
Mas isto continua tendo importância secundária na pauta dos Governos. De olhos fechados para os problemas estruturais do aparato estatal de segurança, seguem apostando em um modelo militarizado que não é direcionado para a desarticulação das redes do crime organizado e do tráfico de armas e que se mostra extremamente violento e ineficaz.
Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2010
Assinam:
Justiça Global
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Conselho Regional de Psicologia – RJ
Grupo Tortura Nunca Mais - RJ
Instituto de Defensores de Direitos Humanos
Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis
Houve 37 mortes nas operações da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão; não se sabe como ocorreram nem quem era bandido ou inocente
.A Folha de São Paulo faz uma GRAVE denúncia, revela que na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão 37 pessoas morreram, mas o Governo Sérgio Cabral não sabe como ocoreram nem quem era bandido ou inocente.
O pior é que o Governo se recusa a prestar qualquer tipo de informação !
"Esse tipo de silêncio seria inadmissível se os mortos fossem moradores ricos de Ipanema, mas, como é gente pobre, vale tudo", disse uma professora da Vila Cruzeiro (reprodução da matéria da Folha de São Paulo).
O pior é que a imprensa do Rio de Janeiro se cala, apenas a de São Paulo faz este tipo de denúncia, isso é uma vergonha !
Reprodução da Folha de São Paulo:
O adolescente Davi Basílio Alves, de 17 anos, morreu na quinta-feira (25/11). Soldado do tráfico -a própria família o admite-, o jovem foi alvejado por policiais e caiu morto em uma rua de terra da Vila Cruzeiro, quando tentava fugir para o Complexo do Alemão. A mãe de Davi mora em uma viela suja, pichada com um imenso C.V. do Comando Vermelho, na parte baixa da favela.
A mulher logo recebeu a notícia de que o filho não conseguiu escapar. Quando o tiroteio amainou, ela correu ladeira acima. Viu Davi morto ao lado de um campinho de futebol e pediu aos soldados vasculhando as quebradas em busca de armas e drogas para que removessem o corpo de lá.
"Eles disseram que tinham mais o que fazer. Que, se ela tinha sido capaz de pôr um bandido no mundo, seria capaz também de enterrá-lo", rememorou uma vizinha.
A mãe telefonou para a funerária. "Disseram que não dava para fazer o trabalho." E não dava mesmo. Rajadas de tiros ainda cortavam a favela.
Choveu na noite de quinta. A manhã úmida veio com um calor de 29ºC na sexta. O corpo do adolescente grandalhão começou a incomodar. Rondavam urubus, que se empoleiravam às dezenas na torre de transmissão elétrica, a poucos metros dali.
AOS PORCOS
Das mais de 20 pocilgas localizadas nos terrenos baldios próximos, saíam porcos magros, em estado de fome crônica. No sábado, o cadáver amanheceu dilacerado.
A mãe arrumou um carro -a vizinhança já não suportava o cheiro. O corpo foi enrolado em uma lona e conduzido ao Hospital Getúlio Vargas, na Penha.
Oficialmente, o jovem morreu naquele dia. Ficou assim registrado na planilha divulgada pelo Instituto Médico Legal: Davi Basílio Alves, 17 anos, pardo, Vila Cruzeiro. Só.
Para a Polícia Militar, 37 pessoas morreram em confrontos polícia-bandidos desde o dia 21 na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão.
Todo dia, a corporação solta um balanço das operações. Coisa sucinta, contabiliza mortos junto com número de garrafas PET e litros de álcool e gasolina apreendidos. Nenhum nome.
Para a Secretaria de Segurança Pública, morreram 18 pessoas (17 identificadas).
O número refere-se aos cadáveres produzidos a partir do dia 25. Os mortos entre os dias 21 e 24, a secretaria não contabiliza. E diz que nem o Instituto Médico Legal do Rio tem dados referentes aos mortos desse período, apesar de todos os corpos recolhidos nas favelas sinistradas pela violência terem sido encaminhados para lá.
INOCENTES
Coincidentemente, a contabilidade da Secretaria de Segurança Pública, omitindo as estatísticas anteriores ao dia 25, evita mencionar incômodas mortes de inocentes óbvios. Como a da adolescente Rosângela Barbosa Alves, 14, atingida por um tiro nas costas enquanto estudava dentro de casa, na frente do computador. Ou a da dona de casa Janaína Romualdo dos Santos, 43, e de um idoso -todos atingidos por balas perdidas.
Sobre as mortes ocorridas a partir do dia 25, o IML nada informa a respeito das circunstâncias em que elas aconteceram. Diz que os "detalhes sobre os laudos são peças de investigação e não serão divulgados".
Assim, não se sabe se houve tiros à queima-roupa, ou o número de perfurações nos corpos, ou se houve concentração de disparos na cabeça. Nem sequer se sabe se alguém morreu esfaqueado.
SILÊNCIO
A Folha pediu para entrevistar um perito do IML. Resposta: "Infelizmente, não há perito disponível para conceder entrevista sobre o laudo cadavérico dos corpos".
"Esse tipo de silêncio seria inadmissível se os mortos fossem moradores ricos de Ipanema, mas, como é gente pobre, vale tudo", disse uma professora da Vila Cruzeiro.
O segurança Rogério Costa Cavalcante, 34, aparece em uma lista de mortos como um dos "traficantes que trocaram tiros com os policiais", segundo informação oficial da assessoria de comunicação da Polícia Civil do Rio.
Das poucas coisas que se sabe sobre os mortos nos confrontos dos últimos dias, uma das mais certas é que Rogério Costa Cavalcante não trocou tiros com os policiais. Ele foi alvejado bem na frente das câmeras de fotógrafos e cinegrafistas.
Tinha os bolsos cheios de convites para a festa de aniversário de seu único filho. Iria entregá-los quando deu o azar de ficar entre os fogos da polícia e dos traficantes.
Cavalcante caiu com um buraco na barriga, pediu socorro e desfaleceu na frente das câmeras. A Primeira Página da Folha de sábado passado (27/11) publicou a foto.
SEM AUTORIDADE
O homem foi enterrado no cemitério do Catumbi na terça-feira (30/ 11). Com a polícia acusando-o de ligação com o tráfico, nenhum representante do Estado achou necessário levar solidariedade à família. Da imprensa que se acotovelava no Complexo do Alemão quando Cavalcante foi atingido, só a Folha acompanhou o enterro.
O Ministério Público ainda aguarda a conclusão dos inquéritos sobre as mortes, para entrar na história. Isso pode demorar até 30 dias.
Na última quinta-feira, um grupo de ONGs com atuação na área dos confrontos reuniu-se para "construir uma agenda propositiva para o conjunto de favelas do Alemão". Pediam investimentos do governo. Sobre os 37 mortos, nenhuma palavra.
Fonte: http://ricardo-gama.blogspot.com
A sociedade precisava se livrar do enclave do banditismo representado pelo Comando Vermelho no Complexo do Alemão; disso ninguém tem dúvida, afinal, trata-se dos direitos humanos da população livrar-se dos bandidos. Foi fartamente anunciada a megaoperação policial e seus riscos, e oferecido um abrigo para que os moradores por poucos dias, fizessem um sacrifício para se livrarem do alijamento social de que eram vítimas graças ao tráfico. Boa parte dos moradores não aceitou esse sacrifício e se expôs ao risco: um vídeo da record mostra uma senhora correndo dos tiros por uma viela ao voltar da padaria no meio da operação; uma família voltando de uma festa de aniversário e insistindo em subir a ladeira em meio ao megatiroteio; outros que tendo se recusado a se ausentarem durante o período da ocupação, mantiveram suas atividades normais em casa em meio aos tiros próximos (como a moça que estava no computador quando foi atingida). É lamentável, mas todos nós passamos por situações em que somos informados dos riscos e cabe a nós fazer um sacrifício temporário por um bem maior; alguns dos mortos pagaram o preço de não fazerem esse sacrifício. Então você é morador de Ipanema, vê um tiroteio na sua porta e vai a padaria porque é seu direito de manter suas atividades normais? Está arcando com o risco de morte.
ResponderExcluirEstá mais que na hora da reocupação, não acham ? A primeira ocupação já está com validade vencida, mais que vencida.
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