Imagens registradas por veículos remotamente operados dos navios britânicos Mantola e
Gairsoppa, encontrados pela Odyssey (ODYSSEY MARINE EXPLORATION/AFP/15-9-2011)
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A última década foi próspera para a Odyssey Marine Exploration. Especializados em encontrar naufrágios, seus diretores viram como cinco descobertas no fundo do mar engordaram os cofres da empresa. Os mergulhadores fecharam 2009 com um lucro de US$ 4,3 milhões. A receita, no ano seguinte, pulou para US$ 21 milhões. Os números de 2011 ainda não foram divulgados, mas seriam muito maiores. A companhia, fundada em 1994 na Flórida, diz que a busca por seus serviços é crescente — inclusive por governos, que veem nas embarcações antigas, carregadas de ouro, prata e porcelanas, uma fonte alternativa de renda.
O último a contar com os serviços da Odyssey foi o Reino Unido. Em meados do ano passado, o cargueiro Gairsoppa, de bandeira britânica, foi encontrado a 480 quilômetros ao sul da Irlanda. Um bombardeio, comandado pela Marinha alemã em 1941, mandou a embarcação para 4.700 metros abaixo da superfície. E só agora foram retiradas dali as 200 toneladas de prata que transportava, avaliadas em 150 milhões de libras (ou R$ 467 milhões). Oitenta por cento do valor teve como destino a conta bancária dos mergulhadores. O resto, segundo acordo firmado pela empresa com o Departamento de Transportes britânico, vai para Londres.
— Muitos governos têm interesse em recuperar cargas valiosas a bordo desses naufrágios — conta Mark Gordon, presidente e chefe de operações da Odyssey, em entrevista por e-mail ao GLOBO. — O governo britânico receberá 20% do valor da prata recuperada sem ter arriscado o dinheiro do contribuinte na busca ou na recuperação dos navios.
A recompensa é grande, mas o que se gasta até chegar a ela é considerável, pondera Gordon. Milhões de dólares são despendidos em mão-de-obra — 200 pessoas espalhadas mundo afora, entre arqueólogos, historiadores, curadores, administradores, engenheiros — e na$que é, provavelmente, o funcionário mais importante, o robô.
O Veículo Remotamente Operado (ROV, em inglês), robô desenvolvido pela empresa, é o único a ir para baixo d'água. Controlado a partir de uma sala, ele é a etapa final de projetos iniciados há anos antes, em laboratórios.
— Nosso banco de dados tem mais de 6 mil naufrágios — ressalta Gordon. — Os pesquisadores desenvolvem dossiês para cada vários navios, avaliando quais seriam os "encontráveis", se as operações são viáveis economicamente e como e para quem reivindicaríamos o direito de propriedade do que for encontrado.
A partir daí, os números são mais nebulosos — a empresa não divulga em quantos projetos trabalha simultaneamente, nem onde. O GLOBO apurou que a empresa poderia, inclusive, estar, de olho na costa brasileira. Sua entrada em nosso litoral já provoca arrepios entre arqueólogos, contrários, inclusive, à legislação dúbia relacionada à exploração marítima.
No Brasil, mais de 2 mil navios afundados
Perguntado sobre as novas investidas da Odyssey, o presidente da empresa, Mark Gordon, desconversa:
— Há um punhado de alvos em nossa lista de prioridades, mas não estamos preparados para mencionar seus nomes. Aliás, você só vai ouvir falar deles depois que estiverem completados.
Entraves jurídicos e uma confusão — esta parcialmente resolvida — sobre quem seria o responsável por este patrimônio abriram as portas do Brasil para a exploração subaquática. A iniciativa privada ainda demonstra pouco interesse no setor, mas há o temor de que a entrada da empresa americana desperte a atenção do mercado.
A Marinha organiza, há pouco mais de um ano, o Atlas de Naufrágios da costa brasileira. Sua Diretoria de Patrimônio Cultural já catalogou 2.125 navios afundados no litoral do país. Os mais antigos são do século XVI — ou seja, não contemplam incidentes ocorridos com embarcações indígenas anteriores ao Descobrimento, cujos registros jamais foram documentados.
Não faltam, portanto, localidades para proteger. O problema é o ínfimo contingente de profissionais capacitados para esta função.
Poucos anos atrás, a arqueologia subaquática sequer era considerada ciência. Para todos os efeitos, tratava-se apenas de um assunto entre mergulhadores. A visão global sobre o assunto começou a mudar nos anos 1960, nos Estados Unidos. No Brasil, porém, esta conscientização só aportou em 1993, quando Gilson Rambelli apresentou seu primeiro ensaio acadêmico sobre o tema.
O pesquisador é nome obrigatório para quem estuda o patrimônio cultural escondido sob as águas. Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira, ele iniciou sua atividade de arqueólogo-mergulhador — como prefere ser chamado — 20 anos atrás, quando o assunto interessava apenas ele "e mais dois ou três".
— Hoje somos uns 30 — conta. — É pouco para um país da nossa dimensão, até porque, além dos sítios marinhos, há os lacustres e fluviais. Mas acho que daqui a cinco, dez anos seremos 300.
O otimismo é sustentado por mudanças na academia. Dos dez cursos de graduação em arqueologia do país, pelo menos dois — das universidades federais de Sergipe (UFS) e Piauí (UFPI) — já têm disciplinas obrigatórias de arqueologia subaquática. Com isso, há expectativa de que aumente o número de interessados em continuar nesta área no mestrado e doutorado.
— Trata-se de uma área em expansão — assegura Flávio Calippo, professor da UFPI. — A demanda é grande e vem principalmente dos licenciamentos de áreas portuárias e de obras que envolvem estruturas submersas, como hidrovias, dragagens e emissários submarinos.
Doutor em Arqueologia pela USP, Paulo Bava de Camargo assinala que, hoje, os empreendimentos portuários são construídos nos limites ou até mesmo longe das grandes cidades litorâneas, estimulando a prospecção arqueológica de áreas sobre as quais os pesquisadores praticamente não dispunham de informações há cerca de cinco anos.
É por este ganho crescente de tecnologia que os arqueólogos brasileiros não veem com simpatia a atuação da Odyssey — mesmo quando ela caça tesouros a uma profundidade "economicamente inviável ou fisiologicamente impossível", segundo Camargo:
— Nos documentários da empresa há algumas abordagens que se aproximam do trabalho do arqueólogo, mas se destaca muito mais a preocupação com as imagens e o posicionamento do robô — avalia. — Tudo isso num tom aventuresco e de ligeiro deboche das autoridades dos países afetados pelas intervenções. Mostram uma grande e cara parafernália que não envolve qualquer interação humana direta com o sítio arqueológico.
Rambelli, que viu a arqueologia subaquática nascer por aqui, tem a esperança de testemunhar seus colegas irem ainda mais fundo.
— Nós nunca esgotamos um sítio arqueológico. Afinal, no futuro, haverá mais tecnologia — assinala. — Nada substitui a mão do profissional. Hoje não mergulhamos a 100, 200 metros de profundidade, mas um dia podemos chegar lá.
Legislação ainda é confusa
As leis sobre a preservação de bens submersos são contraditórias e não deixam claro o que compete a cada órgão. Até o ano passado, a Marinha e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ainda batiam cabeça. Ambos costuram um acordo desde 2008, que culminou, em novembro último, em um seminário sobre arqueologia subaquática.
— A Marinha tem de ser ouvida, por estar ligada à defesa dos mares, mas o Iphan também tem seu papel — defende Ademir Ribeiro Junior, arqueólogo da Superintendência do Iphan em Sergipe. — Por isso, houve este encontro, onde as duas partes comprometeram-se em cooperar uma com a outra. Agora, só pode haver a remoção e intervenção em sítios de valor histórico com nossa consulta.
Quem quiser se aventurar atrás de bens submersos precisa de autorização da Marinha, mesma Força que administra o Atlas dos Naufrágios.
— Pretendemos criar uma base de dados de interesse histórico e arqueológico, com a localização exata ou aproximada dos navios, que poderá ser vista em cartas eletrônicas — revela o tenente Ricardo Guimarães, encarregado da Divisão de Arqueologia Subaquática da Diretoria do Patrimônio Histórico da Marinha. — Segundo o levantamento, houve maior incidência de naufrágios no Rio, seguido do Rio Grande do Sul e Bahia, e entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Professor de Arqueologia da UFPI, Flávio Calippo elogia a parceria entre Iphan e Marinha, lembrando que, antes do acordo, a situação era "caótica". Calippo espera que as instituições unam-se a especialistas como ele na demanda por leis mais eficazes.
— Em pouco tempo, talvez, consigamos banir os caçadores de tesouro daqui — confia. — Somos um dos poucos países onde exploradores inescrupulosos ainda encontram algum apoio. Talvez a situação seja pior apenas em Moçambique, onde esta prática parece ter se institucionalizado.
Os piratas do século XXI vêm para cá respaldados por uma legislação confusa, que dá margem a interpretações tendenciosas. Uma lei de 1986, que rege sobre a arqueologia subaquática, foi alterada em 2000. Na prática, as novas regras admitem a comercialização de bens resgatados de naufrágios, mesmo os de valor arqueológico. A "autorização", porém, vai de encontro à Constituição de 1988, aquela que, no fim das contas, prevaleceria sobre qualquer adendo — embora a existência de um mercado negro mostre que, na prática, não seja isso que acontece.
Fonte: O Globo
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