Esse mundo é um lugar muito esquisito. Ele esconde muitas coisas estranhas. A história está coalhada de fatos e acontecimentos misteriosos. Percebemos que estamos cercados por um mar de esquisitices, sem nenhuma jangada para nos levar até um lugar mais... normal.
O Mundo Forteano (termo cunhado a partir de Charles Fort, um dos primeiros estudiosos de eventos bizarros) não respeita fronteiras. Ele invade os limites da normalidade e brota do nada, quando e onde menos se espera. Contudo, há lugares onde estranhezas surgem com maior frequência, como por exemplo no mundo dos circos itinerantes do passado. O infame P.T. Barnum contribuiu muito para esses mistérios. Ele era chamado de Rei do Picadeiro Incomum, o Tsar da Taxidermia, o Papa de tudo que era perturbador e chocante. Para muitos ele não passava de um picareta que apresentava atrações de gosto duvidoso e se aproveitava da miséria alheia. Para outros, ele foi o primeiro a investir num estilo de show business rasteiro, que faz sucesso até os dias atuais.
Barnum gostava de chocar o público com histórias exóticas e melodramáticas. Para isso produziu uma menagerie de criaturas bizarras, muitas delas apresentadas para exposição, custando "um níquel a olhadela". De sereias (e tritões) a vacas de duas cabeças, até criaturas mitológicas e diabinhos em garrafas, seu show itinerante apresentava de tudo um pouco. O único problema é que a maioria das coisas que ele colecionava e cobrava dos curiosos para ver, não passavam de fraudes.
Unicórnio falso exposto em show itinerante |
Eles eram o que hoje chamamos de "gafes", o produto de uma cuidadosa taxidermia em que pedaços de diferentes animais e peças fabricadas são acrescidas, formando um espécime único, geralmente bizarro. Criaturas fantásticas, seres dos contos de fadas e lendas criadas e modificados com corpos preservados de animais reais com o intuito de construir dragões, quimeras e unicórnios. É incrível, mas existe todo um mercado clandestino de colecionadores e artistas especializados em criar e negociar "gafes".
Isso nos leva ao tópico central desse artigo, o surgimento de Kap Dwa, o gigante de duas cabeças da Patagônia.
Nos anos 1950 o gigante ainda era exibido na Inglaterra |
A história de Kap Dwa tem início no distante ano de 1673, quando esse pobre diabo, um gigante com inacreditáveis 3 metros de altura e duas cabeças, teria sido capturado por marinheiros espanhóis na Costa da Patagônia, extremo sul da Argentina. Os espanhóis teriam ouvido falar de um gigante canibal vivendo em uma praia afastada, reverenciado e temido como um Deus pelas tribos que habitavam aquela região. Curiosos com as lendas eles decidiram ir à terra fortemente armados, carregando cordas para prender criatura tão singular. Durante a incursão, os homens toparam com o gigante e aterrorizados com a visão dispararam contra ele, ferindo-o gravemente. A seguir, o carregaram para um bote e dali para o navio, onde o amarraram ao mastro principal. Infelizmente os ferimentos eram muito profundos e Kap Dwa não resistiu a eles, morrendo dois dias depois de sua captura.
O que aconteceu com o gigante a seguir não é totalmente claro, mas seus restos foram cuidadosamente preservados pelo cirurgião de bordo que usou um grande barril de aguardente para estocá-lo afim de que ele não se deteriorasse. Eventualmente, o cadáver foi levado para a Espanha onde foi comprado por um Empresário Catalão que enriqueceu com o comércio do Novo Mundo. O sujeito tinha interesse em curiosidades e diz a lenda, adquiriu os restos do gigante que passaram a adornar sua mansão. O corpo devidamente embalsamado foi montado e exposto por décadas em um caixão de vidro. Finalmente, ele acabou desaparecendo misteriosamente, vendido ou roubado não se sabe ao certo para quem.
O enorme pé do Gigante |
O gigante de duas cabeças só foi ressurgir novamente no século XIX em Dover, Inglaterra. Ele foi comprado por um proprietário de Espetáculo de Bizarrice para ser exibido ao público como curiosidade. Esse tipo de show itinerante fazia muito sucesso na época, arrastando multidões com a promessa de experiências incomuns e legítimos arrepios. As atrações eram apresentadas com eloquência e cartazes coloridos que ofereciam um vislumbre do que havia de mais estranho nos quatro cantos do mundo. O circuito de shows no Período Edwardiano chegou a contar com mais de trinta companhias itinerantes apreciadas em toda a Europa e convidadas a se apresentar no continente. O espetáculo, degradante para os padrões atuais, era uma sensação em todas as classes sociais, atraindo até famílias reais e dignatários. Em uma época sem cinema ou televisão, esses shows eram uma forma perfeita de entretenimento.
Depois de mudar de mãos várias vezes, a "atração" foi adquirida pelo Espetáculo do Pier Weston Birnbeck em North Somerset no ano de 1914. Lá ele ficou por 45 anos, atraindo pessoas interessadas em ver aquele "bizarro erro da natureza" ou ainda "o mais estranho espécime humano jamais capturado". Em 1959 o Pier fechou suas portas e o gigante foi comprado por Lord Thomas Howard e oferecido como presente ao Hospital de Baltimore Maryland para ser devidamente estudado.
O Hospital temendo uma propaganda negativa jamais realizou testes para atestar se os restos eram genuínos e ele acabou sendo entregue a uma casa de leilões para ser negociado. O Gigante da Patagônia passou de mão em mão até finalmente ser comprado pelo Bob’s Side Show de Baltimore, um dos últimos Espetáculos de Bizarrice ainda em atividade hoje em dia. Lá ele continua repousando em seu caixão de vidro.
A essa altura, você leitor deve estar se perguntando quanto dessa história é verdade e quanto dela não passa de invenção.
Uma comparação do Gigante de Castelnau e de um homem de 1,80 m |
Primeiro e mais importante: Kap Dwa de fato existe, ou pelo menos seu corpo mumificado com incríveis três metros e catorze centímetros do pé até a ponta de suas duas cabeças.
O atual proprietário dos restos, o Sr. Lionel Gerber oferece uma história diferente a respeito de sua mais estranha peça. Ele afirma que o gigante é um espécime de um bizarro gênero humano, chamado por ele de homogiganticus, um parente próximo do Gigante de Castelnau, outro espécime gigantesco cujos ossos dividem a opinião dos especialista no que diz respeito a sua autenticidade.
Segundo Gerber, ao adquirir a múmia, o dono anterior relatou uma história diferente. O gigante não teria sido morto pelos espanhóis e sim por nativos que acompanharam a expedição na Patagônia e que queriam trocar a criatura por armas. O gigante teria sido morto com perfurações de lança e não a tiros, como se acreditava, e de fato, segundo Gerber os ferimentos que ele apresenta no abdomen são condizentes com a ponta de lanças e não com disparos de armas de fogo. Os marinheiros teriam ficado aterrorizados pela visão da criatura e se negaram a barganhar com os nativos que então preservaram o corpo e o negociaram com uma tribo no Gran Chaco do Paraguai. Estes criaram um tipo de religião ao redor do gigante, o venerando como uma espécie de semi-deus. Mas o relato dos espanhóis a respeito da existência do gigante teria chegado aos ouvidos de outros marinheiros que se interessaram em levá-lo para a Europa. Um desses homens teria sido o Capitão George Bickle, do clipper Olive Branch que empreendeu uma expedição para roubar Kap Dwa da tribo que o tratava como um Deus. A expedição teria sido marcada pela violência e massacre já que os nativos paraguaios não queriam abrir mão de sua divindade.
O último cartaz do Gigante em exibição. |
Mas no fim, como costuma acontecer, o lado mais forte prevaleceu e o Kap Dwa foi levado para a cidade de Blackpool onde ele seria vendido a um Museu. Para frustração de Bickle poucas pessoas se interessaram pelo espécime e as ofertas não compensaram todas as dificuldades para resgatá-lo das mãos dos nativos. Para piorar, Bickle se dizia amaldiçoado pelos feiticeiros do Gran Chaco que lançaram sobre ele uma maldição que o deixou pobre e doente. No fim da vida, Bickle acabou doando a criatura para um show de bizarrices acreditando que assim passaria adiante a maldição.
Ambas as versões da história tem seus méritos. Em primeiro lugar, há registros de que o Gigante de Duas Cabeças tenha sido apresentado no circuito de espetáculos itinerante no século XIX. Também há fotografias e cartazes dele no período em que esteve em exposição no Pier Birnbeck. A compra da múmia por Thomas Howard possui documentação oficial e sua chegada à Baltimore foi devidamente noticiada pela imprensa.
Embora a versão de Gerber seja notável, existem alguns problemas. O Capitão Bickle de fato existiu e foi o comandante de um dos cinco navios britânicos que levavam o nome Olive Branch. Infelizmente Bickle nunca comandou nenhuma embarcação para a América do Sul, ainda que tenha estado no continente como segundo imediato. Também não existe nenhum museu em Blackpool com o qual ele pudesse negociar a múmia. Por outro lado o Capitão teria morrido na miséria, supostamente trancafiado em um manicômio. Se ele teve algum envolvimento na obtenção de Kap Dwa provavelmente jamais saberemos.
De uma forma ou de outra, Bob´s Road Show certamente existe, e detém a propriedade de uma múmia gigantesca identificada como Kap Dwa, embora hoje em dia ele não esteja mais em exibição para o público. Pessoas que viram a múmia cara a cara forneceram uma descrição ambígua sobre os restos. Não existem cicatrizes ou costuras visíveis, e uma vez que o cadáver está atrás de um grosso vidro é impossível analisar a presença de "gafes". A múmia veste uma espécie de tanga feita de linho cru e porta uma pequena lança em sua mão direita.
Gerber proíbe fotografias - as que estão nesse artigo foram tirada s na década de 80, mas diz que seu espécime de homogiganticus encontra-se à venda - desde que o interessado seja "um estudioso" que queira analisar os restos em nome da ciência. Gerber não sabe quanto pediria pela peça, mas "não aceitaria nada menos do que um milhão de dólares". Enquanto não surge uma oferta, o Gigante continua em seu caixão de vidro, longe dos olhares de curiosos.
O que podemos concluir de tudo isso?
Em termos de possibilidade de que tal criatura de fato seja genuína, seu tamanho seria impressionante o colocando facilmente no posto de homem mais alto de que se tem notícia. O homem mais alto registrado pelo Guinness Book foi Robert Wadlow (1918-1940), que media 2,71 de altura. Uma pessoa mais alta que ele pode ser difícil de ser encontrada, mas não é de modo algum uma impossibilidade, ainda que o gigante seja 40 centímetros mais alto que Wadlow.
Quanto às duas cabeças, também não se trata de uma impossibilidade biológica. Gêmeos congênitos são são exatamente incomuns, mas raramente estes sobrevivem a uma idade avançada, quanto mais em circunstâncias atípicas, como uma altura avantajada.
As histórias fantásticas foram obviamente exageradas pelos promotores dos shows bizarros que se empenham em construir narrativas fascinantes e envolventes para suas atrações. Muitos podem dizer que Gerber e todos que vieram antes dele não passam de aproveitadores, mas sem dúvida eles sabiam como vender seus espetáculos. O fato dele se negar a permitir que as pessoas vejam a múmia em seu poder fez com que nos últimos cinco anos surgissem ofertas para adquiri-lo, ainda que o valor esteja abaixo do milhão desejado. Daqui a alguns anos, quem sabe?
Será que o Gigante de Duas Cabeças da Patagônia é real? Seria ele apenas o resultado da criatividade e imaginação de um taxidermista? Ou a combinação de ambos?
Provavelmente nunca saberemos, mas a história do Gigante de Duas Cabeças continua sendo incrivelmente estranha, causando fascinação semelhante a das pessoas que pagavam uma ninharia para ver com seus próprios olhos o que havia de mais estranho nos quatro cantos do mundo.
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